O peixe vermelho from Azul e dura

Written in Portuguese by Beatriz Bracher

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Tom e Guto largam as botas molhadas no quartinho de baixo. Falam alto, como se ainda estivessem no meio do vento. Barulho de porta de geladeira, cadeira sendo arrastada, mãe, cheguei, desce para comer com a gente. Comer, comer, sempre essa preocupação na memória de Tom. Não devo estar tão magra, mas de fato não sou capaz de saber o quanto não estou comendo, já que me sinto o tempo todo farta.

Tomei um suco. Minha garganta vive seca com a calefação, o frio e o cigarro, não tem jeito. Tom está tão bonito, ele nunca vai direto do esqui para a casa dos amigos sem passar primeiro para me ver. Não conversa, não gosta de intimidade, sabe o que quer saber me olhando. Um olhar que fica parado esquecido, parece que olhando para dentro, ou, como se diz, olhar de peixe morto. Eu ficava muito assim quando tínhamos aquário lá em casa. Isso foi quando Tom-Tom nasceu, quando percebi que ele tinha saído de mim e era não só uma outra pessoa, mas era um menino, um homem. As coisas do mundo vão sendo entendidas por várias camadas do nosso pensamento, até que finalmente as entendemos de forma tão definitiva que nos parece que sempre soubemos delas.

Depois de dar o peito, Tomás dormia em meu colo e eu olhava os peixes. Ficava assim parada por muito tempo, sem pensar em nada, só vendo aqueles vermelhos passando, nadando de um lado para o outro, de um lado para o outro. Alguns começaram a morrer e achei que podia ser por excesso de comida. Passei a dar menos ração e diminuiu o intervalo entre uma morte e outra. Peixes são sempre iguais e colocávamos novos peixes para substituir os mortos, era difícil perceber se havia um revezamento nas mortes ou se algum dos antigos sobrevivia. Não pensava a respeito, mas numa dessas tardes de pasmaceira percebi que um peixe era, ou estava ficando, maior que os outros. Era o único grande e, por isso, o único reconhecível. A barriga parecia estufada e, como sua cota de vermelho fosse igual à dos menores, ao ter que recobrir uma forma dilatada, tomara-se de um alaranjado brilhante. Talvez fosse uma fêmea com a barriga cheia de ovos.

Olhando com atenção, vi que minha peixa grávida era mais agitada e, diferente do vaguear aleatório dos pequenos vermelhos, o dela parecia intencional. E meu olhar não conseguia mais perder-se naquela existência vermelha e tranquila, ficava preso naquela intenção.

Quando Tomás nasceu eu passei um período sem perceber que o mundo existia. Entrei num grande útero vermelho junto e misturada com ele. A parede uterina foi rareando, transparecendo o mundo e, com ele, Jorge. Um Jorge muito mais dedicado ao trabalho do que antes, as hesitações e ensaios desapareciam. Acho que também para ele o nascimento do filho trouxe falas ancestrais, de protetor e provedor dos seus, da conquista e delimitação de novos espaços no mundo dos homens, no mundo fora de casa. Quando ele falava do trabalho, parecia maior e mais bravo. Lembro de um domingo, na volta de um passeio da manhã em que estiquei um pouco mais a caminhada, Tomás começou a berrar de fome. Eu, entre aflita e divertida com a braveza de um bebê tão pequerrucho, me surpreendi com o olhar orgulhoso e encorajador de Jorge para Tomás. Um assunto de homens.

Cada vez mais translúcido, o peixe maior continuava a crescer. Tom também e já comia cabelinho de anjo com molho de tomate fresco. Entre uma colherada e outra ele acompanhava atento o movimento no aquário. Entre uma colherada e outra, abrindo e fechando a boca como peixe para que Tom fizesse o mesmo, vi a agitação pesada daquela barriga cada vez mais brilhante e, de repente, o peixe laranja começou a cabecear com força um vermelhinho contra a parede do aquário. O vermelho se rompeu e vísceras esbranquiçadas sujaram a água. Os peixes pequenos que tentavam abocanhá-las eram repelidos pelo laranja, que comeu sozinho o fruto de seu ataque. Espantada, parei com a colher no ar e a boca aberta. Tomás deu um berro querendo comida. O bravo rapaz socava a mesa do cadeirão e o barulho do prato espatifando-se no chão me acordou.

Published October 1, 2018
Excerpted from Azul e dura, San Paolo, Editora 34, 2010
© 2010 Editora 34

Il pesce rosso da Azul e dura

Written in Portuguese by Beatriz Bracher


Translated into Italian by Prisca Agustoni

Tom e Guto abbandonano gli stivali bagnati nella stanzetta al piano inferiore. Parlano forte, come se ancora stessero in mezzo al vento. Rumore di porta di frigorifero, sedia trascinata, mamma, sono arrivato, scendi a mangiare con noi. Mangiare, mangiare, sempre questa preoccupazione nella memoria di Tom. Non devo essere così magra, ma è vero che non sono in grado di dire quanto poco sto mangiando, visto che mi sento sempre sazia.

Ho bevuto un succo di frutta. La mia gola è sempre secca a causa del riscaldamento, del freddo e delle sigarette, non c’è nulla da fare. Tom è così bello, non va mai direttamente dallo sci alla casa degli amici senza passare prima a trovarmi. Non parla, non gli piace l’intimità, sa cosa vuol sapere solo guardandomi. Uno sguardo che resta sospeso, dimenticato, quasi come guardando verso l’interno o, come si dice, facendo lo sguardo da pesce lesso. Io restavo spesso così quando avevamo l’acquario là in casa. Era quando Tom è nato, quando ho capito che lui era uscito fuori da me ed era non solo un’altra persona, ma era un bambino, un uomo. Capiamo le cose del mondo piano piano seguendo la stratificazione del pensiero, finché poi le capiamo in modo così definitivo che ci sembra di saperle da sempre.

Dopo avergli dato il seno, Tomás dormiva tra le mie braccia e io guardavo i pesci. Me ne stavo lì ferma per molto tempo, senza pensare a nulla, solo guardando quei pesci rossi mentre giravano, nuotavano da una parte all’altra, da una parte all’altra. Alcuni iniziarono a morire e pensai che potesse trattarsi di eccesso di mangime. Iniziai quindi a dar loro meno mangime e diminuì l’intervallo tra una morte e l’altra. I pesci sono sempre uguali e aggiungevamo dei nuovi pesci per sostituire quelli morti, era difficile percepire se ci fosse un’alternanza nelle morti o se uno dei pesci antichi sopravviveva. Non ci pensavo, ma in uno di quei pomeriggi languidi vidi che un pesce era, o stava diventando, più grande degli altri. Era l’unico pesce grande, quindi l’unico riconoscibile. La pancia sembrava gonfia, e visto che la sua quota di rosso era pari a quella dei pesci più piccoli, nel dover coprire una superficie dilatata, era diventato di un arancio brillante. Forse era una femmina con la pancia piena di uova.

Osservando con attenzione, vidi che il mio pesce incinto era più agitato e il suo vagare, diversamente dal vagare aleatorio dei piccoli pesciolini rossi, sembrava intenzionale. E il mio sguardo non riusciva più a perdersi in quell’esistenza rossa e tranquilla, era catturato in quell’intenzione.

Quando nacque Tomás passai un periodo senza percepire che il mondo esisteva. Entrai in un grande utero rosso assieme e mischiata con lui. La parte uterina poco a poco divenne scarsa, lasciando apparire il mondo e, con lui, Jorge. Un Jorge molto più dedito al lavoro rispetto a prima: le esitazioni e i tentennamenti scomparvero. Credo che anche in lui la nascita del figlio ravvivò questioni ancestrali, la protezione e il sostegno dei suoi, la conquista e la delimitazione di nuovi spazi nel mondo degli uomini, nel mondo fuori casa. Quando parlava di lavoro, sembrava più grande e più risoluto. Mi ricordo di una domenica, al ritorno da una passeggiata mattutina durante la quale allungai di poco il percorso, quando Tomás iniziò a gridare dalla fame. Io, un po’ afflitta un po’ divertita nell’osservare la rabbia di un bebè così piccolo, fui sorpresa dallo sguardo orgoglioso e incoraggiante di Jorge verso Tomás. Una cosa tra uomini.

Sempre più traslucido, il pesce più grande continuava a crescere. Così pure Tom, che mangiava già capelli d’angelo con salsa al pomodoro fresco. Tra una cucchiaiata e l’altra, seguiva attento il movimento nell’acquario. Tra una cucchiaiata e l’altra, aprendo e chiudendo la bocca come un pesce così che Tom facesse lo stesso, vidi l’agitazione pesante di quella pancia sempre più brillante e, improvvisamente, il pesce arancione iniziò a spingere con forza un piccolo pesce rosso contro la parete dell’acquario. Il pesce rosso si aprì e le viscere biancastre sporcarono l’acqua. I piccoli pesci rossi che cercavano di afferrarle con la bocca erano allontanati dal pesce arancione, che si mangiò da solo il frutto del suo attacco. Spaventata, restai con il cucchiaio a mezz’aria e la bocca aperta. Tomás diede un urlo, voleva il suo cibo. Il piccolo furioso picchiava sul tavolo del seggiolino e il rumore del piatto in frantumi per terra mi risvegliò.

Published October 1, 2018
Excerpted from Azul e dura, San Paolo, Editora 34, 2010
© 2010 Editora 34
© 2018 Specimen


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